Valor Econômico
"Mensalão será um julgamento de exceção", diz Wanderley
Guilherme
Por Cristine Prestes | De
São Paulo
O mensalão não tem nada
de emblemático - ao contrário disso, será um julgamento de exceção. Essas são
as palavras do cientista político Wanderley Guilherme dos Santos, para quem os
ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) têm construído um discurso paralelo
ao longo das sessões que destoa da tradição da Corte. "Nunca mais haverá
um julgamento em que se fale sobre flexibilização do uso de provas, sobre
transferência do ônus da prova aos réus, não importa o que aconteça",
afirma.
As inovações citadas
por Santos sustentam sua crença na exceção. Presidente da Fundação Casa de Rui
Barbosa, autarquia do Ministério da Cultura, o estudioso da democracia e de
regimes autoritários é considerado um decano da ciência política no Brasil. A
seguir, os principais trechos da entrevista concedida ontem, por telefone, ao Valor:
Valor: Na sua avaliação, o julgamento do mensalão no Supremo tem
sido técnico ou político?
Wanderley Guilherme dos
Santos: Estou seguro de que até
agora, do que tenho acompanhado, os votos finais dos ministros tiveram um
fundamento técnico. Eles se referem sempre a pontos do Código Penal, que
explicitam quais sejam, e dão as razões pelas quais as evidências apresentadas
justificam aquela votação. Comentários paralelos, entretanto, raramente têm tido
a ver com esses votos. Alguns ministros têm feito comentários que não têm
nenhuma pertinência com o que vem sendo julgado. Temo que isso seja uma
preparação para julgamentos e votos que não sejam tão bem fundamentados
legalmente, mas sim baseados nas premissas que os juízos paralelos vêm
cristalizando no cérebro das pessoas que assistem. Temo que uma condenação dos
principais líderes do PT, e do PT como partido, acabe tendo por fundamento não
evidências apropriadas, mas o discurso paralelo que vem sendo construído.
Valor: O sr. está falando do uso da teoria do domínio do fato,
usada para atribuir responsabilidade penal a um réu que pertence a um grupo
criminoso, mas que, por ocupar função hierarquicamente superior, não é o mesmo
sujeito que pratica o ato criminoso?
Wanderley Guilherme: Entre outras coisas. Se retomarmos a primeira sessão,
quando os ministros estavam decidindo se deveriam fatiar ou não o julgamento,
Gilmar Mendes fez uma declaração que muito me assustou. Ele disse que 'o
julgamento [do processo do mensalão no Supremo] desmistifica a lenda urbana de
que prerrogativa de foro é sinônimo de impunidade' e que isso tinha que acabar.
Fiquei assustado. O que é isso? Ele já estava dizendo que, para efeito de
demonstrar à opinião pública que ela tem um preconceito sem fundamento em
relação ao Supremo, o tribunal vai condenar. Ao longo do processo o ministro
Luiz Fux, ao julgar alguns dos réus do processo por gestão temerária, disse que
era uma gestão horrorosa. Não existe gestão horrorosa, isso é um comentário que
se faz em campo de futebol, não é um comentário de um ministro da Suprema
Corte.
Valor: O sr. acha que os ministros estão dizendo, nas entrelinhas
do julgamento, que o tribunal condenará alguns réus sem fundamentar essas
condenações em provas concretas?
Wanderley Guilherme: Exato, são comentários que às vezes não têm a ver com o que
está sendo julgado, mas na hora do voto os ministros votam de acordo com a
legislação. É uma espécie de vale-tudo. Esse é meu temor. O que os ministros
expuseram até agora é a intimidade do caixa 2 de campanhas eleitorais e o que
esse caixa 2 provoca. A questão fundamental é: por que existe o caixa 2? Isso
eles se recusam a discutir, como se o que eles estão julgando não fosse algo
comum - que pode variar em magnitude, mas que está acontecendo agora, não tenho
a menor dúvida. Como se o que eles estão julgando fosse alguma coisa inédita e
peculiar, algum projeto maligno.
Valor: O Supremo está destoando da forma como costuma julgar
outros processos?
Wanderley Guilherme: Sem dúvida. Esse Supremo tem sido socialmente muito
avançado, bastante modernizador, mas ele é politicamente pré-democrático.
Primeiro porque os ministros têm uma ojeriza em relação à política
profissional, como se eles não fizessem política - fazem o tempo todo. Mas em
relação à política profissional eles têm um certo desprezo aristocrático. E
quando na política brasileira irrompeu a política popular de mobilização, eles
não aceitaram, dão a isso um significado de decadência, degradação.
Valor: Ainda que o caixa 2 de campanhas eleitorais tenha sido o
que motivou os demais crimes apontados pela acusação, em nenhum momento o
Supremo coloca em julgamento o sistema eleitoral brasileiro?
Wanderley Guilherme: Nossa legislação eleitoral é nebulosa, confusa, inconsistente.
Isso está nos jornais todos os dias, cada eleição é um momento de elevado
índice de litígios na sociedade. Cada zona eleitoral decide de forma diferente
a propósito dos mesmos fatos. É uma legislação que provoca conflitos, que traz
uma imprevisibilidade jurídica enorme para o sistema brasileiro. Mas os
ministros não querem aceitar isso, não querem aceitar que a Justiça eleitoral é
a causadora dos problemas políticos no país.
Valor: Mas na atual fase do julgamento, que envolve o núcleo
político, os ministros do Supremo estão citando as coligações entre o PT e
outros partidos de diferentes posições ideológicas...
Wanderley Guilherme: Eles acham que não existem coligações entre partidos de
orientações diferentes, acham isso uma aberração brasileira, mas não conhecem a
democracia. Por isso que eu digo que é pré-democrático, eles têm uma ideia de
como a democracia funciona no mundo inteiramente que é inteiramente sem
fundamento, acham que a democracia é puramente ideológica. Os sistemas de
representação proporcional são governados por coalizões das mais variadas. Não
tem nada de criminoso nisso. Mas os ministros consideram que, para haver
coligações dessa natureza, só pode haver uma explicação criminosa no Código
Penal. Isso é um preconceito.
Valor: Se o Supremo condenar os réus do núcleo político sem
fundamentar suas decisões em provas de que houve crimes, mas o fazendo apenas
porque partidos de diferentes vertentes de pensamento se coligaram, isso não
comprometeria várias instituições brasileiras, a começar pelo próprio sistema
político?
Wanderley Guilherme: Comprometeria se esse julgamento fosse emblemático, como
sugerem. Na minha opinião, dependendo do final do julgamento, acho que nunca
mais vai acontecer. Até os juristas estão espantados com a quantidade de
inovações que esse julgamento está propiciando, em vários outros pontos além da
teoria do domínio do fato. Nunca vi um julgamento que inovasse em tantas coisas
ao mesmo tempo. Duvido que um julgamento como esse aconteça de novo em relação
a qualquer outro episódio semelhante.
Valor: O que se tem dito é que a Justiça brasileira vai, enfim,
levar políticos corruptos para a cadeia. O sr. está dizendo que isso vai
acontecer apenas desta vez?
Wanderley Guilherme: Estão considerando esse julgamento como um julgamento
emblemático, mas é justamente o oposto, é um julgamento de exceção. Isso jamais
vai acontecer de novo, nunca mais haverá um julgamento em que se fale sobre
flexibilização do uso de provas, sobre transferência do ônus da prova aos réus,
não importa o que aconteça. Todo mundo pode ficar tranquilo porque não vai
acontecer de novo, é um julgamento de exceção.
Valor: Um julgamento de exceção para julgar um partido?
Wanderley Guilherme: Exatamente. O Supremo tem sido socialmente avançado e
moderno e é competente, sem dúvida nenhuma, mas é politicamente
pré-democrático. Está reagindo a uma circunstância que todos conhecem, que não
é única, mas porque se trata de um partido de raízes populares. Está reagindo à
democracia em ação - claro que naqueles aspectos em que a democracia é
vulnerável, como a corrupção. Mas é um aspecto que não decorre do fato de o
partido ser popular, mas da legislação eleitoral, feita pelo Legislativo e pelo
Judiciário. Eles são a causa eficiente da face negativa da competição democrática.
Valor: No julgamento da hipótese de compra de votos no Congresso,
não discute o próprio sistema político que permite a troca de cargos por apoio
político ou a existência de alianças regionais, por exemplo?
Wanderley Guilherme: A votação da reforma tributária não foi unânime, mas vários
votos do PSDB e do DEM foram iguais aos dos governistas. Na reforma
previdenciária, o PSDB votou unanimemente junto com o governo, na época o PFL
também votou quase unanimemente. Isso aconteceu na terça-feira, quando todos os
partidos votaram com o governo no Código Florestal - o PT foi o partido com
mais votos contrários. É um erro de análise inaceitável pegar a votação de um
partido e dizer que o voto foi comprado. Isso é um absurdo. E não é só isso. A
legislação é inconsistente no que diz respeito a coligações. Ela favorece a
coligação partidária de qualquer número de partidos - todos, se quiserem, podem
formar uma coligação eleitoral só. Porém, a lei proíbe que partidos que têm
maior capacidade de mobilização financeira transfiram, à luz do dia e por
contabilidade clara, recursos para partidos com menor capacidade de
mobilização. Então você induz a criação de coligações, mas proíbe o
funcionamento delas. Isso favorece o caixa 2, entre outras coisas. Todos os
países com eleições proporcionais permitem coligações, do contrário não há
governo possível. A coligação entre partidos que não têm a mesma orientação
ideológica não é crime.
Valor: Desde o início do julgamento os ministros do Supremo
apontam a inexistência de provas técnicas contra a antiga cúpula do PT,
afirmando que as provas existentes são basicamente testemunhais
Wanderley Guilherme: O ministro Joaquim Barbosa, em uma de suas inovações,
declarou, fora dos autos, que ia desconsiderar vários depoimentos dados em
relação ao PT e a alguns dos acusados porque haviam sido emitidos por amigos,
colegas de parlamento, mas considerou outros depoimentos. A lei não diz isso,
não há fundamento disso em lei. Um ministro diz que vai desconsiderar
depoimentos porque são de pessoas conhecidas como amigos, dos réus, mas pinça
outros, e ninguém na Corte considera isso uma aberração? Parece-me que o
julgamento terminará por ser um julgamento de exceção.
Valor: Isso significa que a jurisprudência que vem sendo criada no
caso do mensalão será revertida após o julgamento?
Wanderley Guilherme: Espero que não, porque realmente se isso acontecer vai ser
uma página inglória da nossa história.
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